Texto e fotos de Nathalia Molina
A poesia que vemos em lugares distantes também pode estar pertinho da gente. Mesmo sem mudar de rua, dá para viajar. No dia-a-dia, em palavras, imagens, cenas cotidianas. Dentro da nossa cidade e até do bairro. Tudo pode ser poesia.
E, como hoje é o Dia Nacional da Poesia, resolvi reproduzir aqui uma que eu escrevi sobre 2 bairros onde morei.
Vizinhança
Já morei numa rua que tinha tripeiro. As senhoras iam até a carrocinha comprar as tripas dos bichos que se comiam.
A feira aos sábados não deixava uma vaga na rua para estacionar. Deslocava o ponto final do ônibus e exalava um fedor forte de peixe.
Isso no fim da rua. No início, era flor com fritura de pastel. A praça que cortava a rua sumia, embaixo do povo do chorinho, animado por cerveja em lata.
Durante toda a semana, eu caminhava na rua olhando para o chão, um campo minado nas calçadas de pedra portuguesa. Era tanto cachorro por lá, que tinha até babá-cão passeando com os bichos.
Na minha antiga rua, havia uma padaria de pão ruim e caixa mal-humorada. O português se dava bem porque era a única na área.
Delícias se encontravam na delicatessen, com pastinhas e vinhos metidos à besta. Excelente cardápio para um Natal sem quorum.
O bar do seu Max mandava cerveja gelada elevador acima. Bastava interfornar. Então, na minha antiga rua, ficava o melhor boteco do Rio. Mas tive de me mudar.
Na rua em que moro hoje, tem um jornaleiro baiano que fala do neto Bem. (Ou seria Ben, americanizado?) O jornaleiro adora o Bem. Diz que parece o Gilberto Gil quando pequeno.
O atendente da farmácia foi pai na mesma época que fui mãe. Desconfiado, verifica no meu filho o desenvolvimento do dele.
Na minha rua, o baleiro não vende fiado nem dá bala de lambuja. Mas deixa pagar depois quem mora perto e esqueceu o cartão de débito.
Os folheados exalam pela grade da patisserie. O francês é bravo, e as atendentes ainda não decidiram se são simpáticas. Me contenta o delicado creme do mil-folhas.
Na rua ao lado, tem um florista. Vende rosas vermelhas e amarelas. De óculos, todo sorriso, monta os buquês enquanto dá boa tarde.
Os taxistas da outra rua sabem da minha vida mais do que eu gostaria de contar. Insistem em reclamar do trânsito de São Paulo, e do calor se não têm ar no carro.
Da minha rua dava para ver a antena em arco-íris. Me acompanhou por uma década. No último ano, o néon se apagou das cores, uma a uma. Já posso me mudar.
12 de janeiro de 2011
Eu me mudei. E sigo observando minha vizinhança, viajando no dia-a-dia. Você vê poesia em cenas cotidianas?
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